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		  | *Autobiografia 
 Enquanto comia
 num gesto tranquilo,
 comia e ouvia
 falar-se daquilo.
 Dormia e ouvia
 solicitamente,
 como se presente
 presente estaria.
 E enquanto comia,
 comia e ouvia,
 a frágil menina
 que no fundo habita,
 que chora e que grita
 saía de mim.
 Saía de mim
 correndo e chorando
 num gesto revolto,
 cabelinho solto,
 roupa esvoaçando.
 Ia como louca,
 chorava e corria,
 enquanto eu metia
 comida na boca.
 Fugia-lhe a estrada
 debaixo dos pés,
 a estrada pisada
 que o luzeiro doira,
 serpentina loira
 que vai ter ao mar.
 Corria a menina
 de braços erguidos,
 seus brancos vestidos
 pareciam luar.
 Por dentro ia a noite,
 por for a ia o dia.
 A vida estuava,
 a maré subia.
 Caiu a menina
 na praia amarela,
 logo um modelo de algas
 se apoderaram dela.
 Se apoderou dela
 carinhosamente,
 que as algas são gestos
 mas não são de gente.
 Caiu e ficou-se
 deitada de bruços,
 desfeita em soluços
 sem forma nem lei.
 Ò minha àguazinha
 faz com que eu não sinta,
 faz com que eu não minta,
 faz com que eu não odeie!
 Àguazinha querida,
 compromisso antigo,
 dissolve-me a vida,
 leva-me contigo.
 Leva-me contigo
 no berço das algas;
 que o sal com que salgas
 seja o meu vestido.
 Ficou-se a menins
 desfeita em soluços,
 seu corpo, de bruços,
 com o mar a cobri-lo,
 enquanto eu, sentado,
 sentado comia,
 comia e ouvia,
 falar-se daquilo.
 
 António Gedeão
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